Dedicação à ciência agronômica e o reconhecimento

07/04/2025 Noticias POR: Fernanda Clariano

Com mais de três décadas de dedicação à pesquisa sobre nutrição da cana-de-açúcar, Raffaella Rossetto conquistou um novo e significativo reconhecimento: sua nomeação para a cadeira 77 da ABCA (Academia Brasileira de Ciências Agrárias).

Ao longo de sua trajetória, Raffaella acumulou contribuições expressivas para o setor sucroenergético, com pesquisas para o manejo da vinhaça, mitigação das mudanças climáticas e uso eficiente dos recursos naturais. Sua experiência internacional, incluindo um período de estudos na Universidade da Flórida, ampliou sua visão sobre a interseção entre agricultura e meio ambiente.

Em entrevista à Revista Canavieiros, a pesquisadora ressaltou o papel do setor sucroenergético na economia e na preservação ambiental, além da importância da ciência para enfrentar os desafios impostos pela crescente demanda por alimentos, energia renovável e conservação dos recursos naturais. Confira!

Revista Canavieiros: Como recebeu a notícia de sua nomeação para a cadeira 77 da ABCA? O que isso representa para você?

Raffaella Rossetto: Recebi a notícia com muita surpresa, acredito que com a mesma sensação que os artistas têm quando recebem o Globo de ouro ou o Oscar. Fiquei muito feliz. Representa para mim o reconhecimento ao meu empenho, ao meu esforço e ao meu trabalho. Também entendo que o prêmio é de todo o grupo de pesquisadores do IAC. Fazemos pouco sozinhos. Trabalhamos sempre como equipe, o êxito de um é o êxito de todos nós. Também compartilho com meus mestres e com colegas que me ensinaram, me apoiaram e seguem me inspirando. A todos eles, minha eterna gratidão.

Revista Canavieiros: Cada cadeira da ABCA tem um patrono. O que significa ocupar a cadeira 77 cujo patrono é Dr. Mauro Carneiro dos Santos?

Raffaella: A ABCA (Academia Brasileira de Ciências Agrárias) possui 97 cadeiras ocupadas por membros titulares, além de outras 11 destinadas a membros eméritos. A cadeira 77 tem como patrono o Dr. Mauro Carneiro dos Santos, agrônomo nascido em Recife e professor aposentado da Universidade Federal Rural de Pernambuco.

O Dr. Mauro foi um dos sócios fundadores da Sociedade Brasileira de Ciência do Solo, presidindo-a no biênio 1963-1965. Também contribuiu significativamente para a engenharia agronômica no Nordeste, sendo um dos fundadores da Associação dos Engenheiros Agrônomos do Nordeste e atuando como seu presidente entre 1955 e 1957. Além disso, participou ativamente dos Colegiados Superiores da Universidade Federal Rural de Pernambuco como Membro Efetivo.

Com uma trajetória exemplar dedicada à ciência e ao ensino, o Dr. Mauro Carneiro dos Santos faleceu aos 79 anos, em 2023. Para mim, é uma imensa honra tê-lo como patrono. Compartilhamos a convicção de que o solo é uma herança valiosa, cuja preservação é essencial para as futuras gerações. Estudar e compreender o solo é um privilégio, pois ele desempenha um papel fundamental na manutenção da vida na Terra, sendo a base para cultivos alimentares, produção de fibras e energia, além de servir como suporte físico para nossas edificações.

Revista Canavieiros: A ABCA reúne profissionais renomados da ciência agronômica. Como é estar ao lado de nomes tão relevantes no setor?

Raffaella: Após a reestruturação ocorrida em 2018, a ABCA foi presidida por Alysson Paulinelli, seguido por Roberto Rodrigues. Atualmente é presidida pelo professor Evaldo F. Vilela, e conta com um quadro de membros de grande importância para a agricultura nacional. A lista de nomes ilustres é extensa, e é uma grande honra fazer parte desse seleto grupo de profissionais altamente qualificados.

A ABCA promove reuniões online e eventos com apresentação de temas relevantes e de interesse da agricultura brasileira. São sempre reuniões enriquecedoras, pois reúnem especialistas de diversas áreas do conhecimento agronômico, proporcionando debates produtivos e embasados. Durante esses encontros, um convidado apresenta um tema e este é discutido com profundidade. As deliberações podem resultam na elaboração de documentos que servem para orientar e subsidiar órgãos responsáveis pela tomada de decisões no setor.

Revista Canavieiros: Sua trajetória é marcada por contribuições para o setor sucroenergético. Quais delas considera mais importante e por quê?

Raffaella: Tenho 31 anos de dedicação aos estudos da nutrição da cana de açúcar. É difícil definir qual contribuição foi mais importante, mas gosto de lembrar do Boletim 100 do IAC, que faz a recomendação da correção e da adubação para a cultura da cana de açúcar. Foi um trabalho em equipe, desenvolvemos diversos experimentos para dar base científica às recomendações e ouvimos muitos colegas experts no assunto. Também participei de tantos outros trabalhos importantes, como os estudos de decomposição de palhada ou de melhores manejos no uso de resíduos para diminuir as emissões de gases do efeito estufa. Tenho um sentimento de orgulho em dizer que todos esses estudos foram feitos em colaboração com outros pesquisadores e com treinamento de alunos e estagiários. Ajudar a formar um profissional e ter orgulho de vê-lo brilhando em sua carreira é muito gratificante.

Revista Canavieiros: O uso da vinhaça na cana-de-açúcar é um tema importante em suas pesquisas. Quais os principais desafios e avanços nessa área?

Raffaella: A vinhaça é um insumo tão interessante que passou de vilã ambiental do setor nos anos 70 e 80; aquele resíduo com alto potencial poluidor, alvo de inúmeras críticas e apontado como o “calcanhar de Aquiles” na produção da cana; para um insumo desejado e de importância crucial para o cultivo da cana orgânica ou do cultivo da cana com sustentabilidade. A vinhaça sempre foi objeto de meus estudos. Compreender suas reações no solo e as interrelações com a cana e os microrganismos foi fascinante. Esses estudos mostraram o quanto é importante entender as situações em que pode haver riscos envolvidos na lixiviação de íons e possível (porém pouco provável com manejo adequado) contaminação do lençol freático. Falar do manejo dos resíduos da cana e em especial de vinhaça em minhas apresentações e aulas é sempre muito estimulante para mim. É um setor onde o Brasil “dá show” de eficiência e competência.

Revista Canavieiros: Como a experiência de pós-doutorado na Universidade da Flórida influenciou suas pesquisas, especialmente na área de bioenergia?

Raffaella: Meu período nos Estados Unidos foi mais curto do que eu gostaria, porém me trouxe uma nova visão da ciência e da importância do setor canavieiro. A região dos Everglades na Flórida é de pântanos drenados para a agricultura. O lençol freático é bem superficial e, portanto, a lixiviação de íons vindos de fertilizações e da mineralização da matéria orgânica tem aumentado os níveis de nutrientes na água causando eutrofização de lagos e de canais de drenagem. A Flórida não poderia utilizar vinhaça “in natura” nos solos por questões ambientais. Na época, durante a minha estadia na Estação Experimental de Belle Glade, Universidade da Flórida, meus conhecimentos e minha percepção sobre a importância da agricultura estar fortemente aliada às questões ambientais aumentaram grandemente. Também aumentei meus conhecimentos em plantas para bioenergia.

Revista Canavieiros: Você trabalha com aspectos ambientais da produção de cana-de-açúcar. Como vê o papel do setor sucroenergético na mitigação das mudanças climáticas?

Raffaella: Acredito que cada um, cada um de nós tem responsabilidades e comprometimentos com a mitigação das mudanças climáticas. As pessoas pensam que a culpa das mudanças climáticas é unicamente do agronegócio, e se esquecem que uma cidade também gera impactos ambientais, ela não surgiu do nada, o local foi anteriormente desmatado, asfaltado, recoberto e geramos lixo a cada momento, além de esgoto; as indústrias também participam principalmente na emissão de gases de efeito estufa. Toda vez que alguém joga uma latinha para fora do carro, está colaborando, mesmo que ele imagine que infimamente, para impactos climáticos. O que cada um pode fazer? Consumir menos, ter critério no uso da água, da energia, fazer coleta seletiva, por exemplo. São muitas maneiras. Mas todos têm que fazer a sua parte. Bem, a cana de açúcar e a cadeia sucroenergética como um todo, também têm suas responsabilidades. Comparativamente com as práticas de 15 anos atrás, somos muito mais sustentáveis. Antes queimávamos a cana para facilitar a colheita, hoje deixamos a palhada protegendo o solo e ciclando nutrientes. Ou produzimos mais etanol ou energia com essa palha. Utilizamos todos os resíduos gerados na mesma cadeia. Não precisamos de energia externa para mover as usinas. Temos economia circular com cadeia que permite diversos produtos com valor econômico. Temos muitos exemplos de responsabilidade ambiental. A atividade canavieira restaurou grandes áreas de preservação permanente e reserva legal, protegendo nascentes, diminuindo o assoreamento dos rios e melhorando a conservação do solo. Durante a fotossíntese a cana utiliza o CO2 (um dos gases de efeito estufa), e utiliza o carbono fixando-o em suas células. Como a cana produz muita biomassa, a retirada de C da atmosfera é muito significativa. Parte do carbono da palhada e do carbono retido nas raízes contribui para o sequestro de carbono no solo. Essa contribuição é por si muito relevante, mas ainda temos o etanol, que utilizado como biocombustível, evita emissões que seriam geradas pelo uso do petróleo e da gasolina. O balanço de carbono durante o cultivo da cana e a produção de açúcar e etanol é sempre muito positivo, fato importante para entender a contribuição do setor na mitigação das mudanças climáticas.

Revista Canavieiros: Na sua visão, quais os principais desafios enfrentados pela ciência agronômica no Brasil atualmente?

Raffaella: Até a década de 80, a ciência agronômica tinha apenas o objetivo de produzir, de gerar renda e no máximo gerar desenvolvimento local e regional. Com o alarme ecológico e a crescente consciência de que muitos insumos utilizados são finitos e não renováveis, a agricultura passou a ter uma crescente responsabilidade com a questão ambiental. Atualmente, os desafios enfrentados passam por obter alta produtividade, sem desmatar, sem deslocar outras culturas, de preferência sem utilizar irrigação, não utilizando ou utilizando defensivos e fertilizantes alternativos aos tradicionais, conservando o solo e a água, com eficiência em todos os elos da cadeia, entre outros. A sociedade está cada vez mais exigente. Acredito que as soluções técnicas para os problemas não são as mais difíceis. O mais difícil e desafiador serão as decisões políticas, aquelas que não dependem apenas do setor. Conscientizar a sociedade sobre os benefícios do setor sucroenergético é outro desafio que precisa se enfrentado.

Revista Canavieiros: Como avalia o impacto das novas tecnologias na produtividade e sustentabilidade da canavicultura?

Raffaella: As novas tecnologias são bem-vindas no que dizem respeito ao aumento da produtividade e da sustentabilidade, mas precisam ser econômicas. Muitas delas necessitam de ajustes, de testes, de adaptações. Algumas têm aplicação muito rápida, como os drones para aplicação de herbicidas localizados, outras necessitam de mais tempo, como plantadoras mecânicas ou colhedoras. As boas tecnologias acabam encontrando seu espaço. Todas exigem aprimoramento e treinamento das pessoas envolvidas no seu uso. O treinamento de pessoas os qualifica para um trabalho específico e mais digno.

Revista Canavieiros: O que acredita ser necessário para atrair mais jovens talentos para a ciência agronômica?

Raffaella: Os jovens precisam sentir-se integrados. Com a internet no campo o problema do encanto das “luzes da cidade” fica diminuído. A ciência agronômica se modernizou com a introdução da era digital e da internet, adotando novas tecnologias que melhoraram a eficiência, a sustentabilidade e a produtividade, e de quebra seduzem os jovens. Entre elas, os drones e os sensores de solo, clima e plantas conectados à internet permitem que os gestores e agricultores monitorem as condições em tempo real, como temperatura, umidade e níveis de nutrientes. Isso possibilita decisões mais sensatas, como o momento certo para irrigar ou aplicar fertilizantes. A agricultura de precisão foi muito beneficiada pela introdução do GPS e mapeamento por satélite ajudando a criar mapas detalhados das propriedades agrícolas, e permitindo aplicações mais eficientes de insumos como fertilizantes e defensivos. Isso não só melhora os rendimentos, mas também reduz o impacto ambiental. E ainda deve crescer o interesse pela automação e as máquinas inteligentes, que podem ser controladas remotamente. E a Inteligência Artificial, que ajudará nas tomadas de decisão. Por fim, inúmeros aplicativos e softwares de gestão agrícola permitem que os gestores acompanhem todas as operações em campo, desde o plantio até a colheita, gerenciem estoque de insumos, vendas e finanças, e se conectem com fornecedores e compradores. A internet também permitiu a integração entre os técnicos e gestores, inclusive internacionalmente, o acesso ao conhecimento ficou muito facilitado e as empresas de agrotecnologia fornecem soluções inovadoras de forma mais acessível via plataformas digitais. Toda essa tecnologia tem ajudado a seduzir e a manter jovens nas empresas rurais.

Revista Canavieiros: Quais são os próximos passos ou projetos que gostaria de desenvolver no setor sucroenergético?

Raffaella: Acredito que tenho ainda a contribuir na formação de jovens e no aprimoramento dos técnicos do setor. Muito embora a tecnologia tenha avançado grandemente, as bases científicas dos processos naturais continuam as mesmas. E as bases científicas nos fazem entender os processos, e com maior entendimento, melhor resultado no uso das tecnologias. Gostaria de colaborar ainda mais para o entendimento das relações entre a cana, o solo e osmicrorganismos.

Revista  Canavieiros: Como a nomeação para a ABCA pode contribuir para ampliar o alcance de suas pesquisas e fortalecer a área de agronomia no Brasil?

Raffaella: A missão da ABCA é ser uma organização vital à sociedade civil para informar o público e os formuladores de políticas públicas sobre os desafios e as soluções para a agricultura. Busca ainda a conduta ética, profissionalismo e rigor científico como instrumentos para o debate de ideias, troca de conhecimentos e formulação de estratégias para o alcance da nossa missão. Minha missão pessoal na ABCA é levar as principais discussões do setor sucroenergético para o debate nacional sempre construindo pontes.

Revista Canavieiros: Qual mensagem gostaria de deixar para futuros engenheiros-agrônomos que se inspiram em sua trajetória?

Raffaella: Deixo a mensagem de que nunca se tornem a maior pedra no caminho em seus próprios sonhos, nem naqueles de outras pessoas. Que busquem o conhecimento com paixão, pois é através do estudo que aprendemos não apenas a crescer em sabedoria, mas também a ser mais compassivos com nossas próprias limitações e com as dos outros. Que a resiliência seja a força que os guia em todos os momentos, mostrando que é possível seguir em frente, mesmo diante das dificuldades da vida.