Impactos da queima não planejada sobre a qualidade da matéria-prima

09/10/2004 Noticias POR: Márcia J. R. Mutton

A qualidade da matéria-prima a ser empregada no processamento industrial sempre desperta a preocupação dos técnicos da agroindústria canavieira, pois a eficiência do processo industrial de recuperação do açúcar depende da qualidade da matéria-prima encaminhada para a indústria.

Graças ao processo fotossintético, a cana produz açúcares que no desenvolvimento vegetativo são utilizados pela planta para construção de folhas, raízes, colmos, flores, bainhas, rizomas, dentre outras estruturas. Nesta fase, toda produção é carreada para as regiões de crescimento, sendo os monossacarídeos, a matéria-prima básica para os processos metabólicos. Caso haja a síntese de sacarose, esta será hidrolisada através do sistema de invertases, liberando glicose e frutose, que serão prontamente metabolizados.

À medida que a planta se desenvolve, ocorre a formação e o alongamento dos entrenós, além da constituição do tecido parenquimatoso, que preenche o interior dos mesmos, sendo o local de deposição da sacarose na maturação. Quando este sistema de armazenamento se estabiliza no colmo adulto indica que está pronto para ser colhido.

A colheita é fundamental para a produção de matéria-prima de qualidade, para a recuperação industrial da sacarose armazenada nos colmos. As etapas deste processo envolvem procedimentos que reativam o complexo enzimático das invertases, provocando perda dos açúcares armazenados.

A cana madura, pronta para ser colhida é o resultado das operações de manejo e práticas culturais e pode perder rapidamente o açúcar acumulado lentamente e sem grande dispêndio de energia, em pouco tempo, após iniciada a operação de colheita. A sacarose produzida e armazenada pela planta pode ser recuperada pela indústria ou ser utilizada em processos metabólicos que envolvem a deterioração, quando estes açúcares não podem ser repostos nos colmos. Podem ocorrer ainda perdas relacionadas ao corte, injúrias decorrentes do carregamento ou transporte, queima e deteriorações microbiológicas.

A queima da palha era um procedimento empregado para limpar as folhas secas e verdes, deixando os colmos limpos para serem cortados manualmente, sendo utilizada em todo país. Em 2007, o governo de São Paulo e a Unica assinaram o Protocolo Agroambiental do Setor Sucroenergético para eliminar as queimadas até 2017. O setor produtivo, considerando os benefícios da eliminação desta prática implementou antes deste prazo, a colheita mecanizada da cana, proporcionando ganho ambiental pela menor emissão de poluentes atmosféricos e gases de efeito estufa na atmosfera: gás carbônico (CO2), monóxido de carbono (CO), óxido nitroso (N2O), metano (CH4) e a formação do ozônio (O3), poluição do ar atmosférico pela fumaça e fuligem, além da melhoria do solo e qualidade da matéria-prima a ser processada.

Atualmente, o processo de colheita é realizado sem despalha a fogo, sendo a separação das folhas verdes, secas e ponta, dos colmos feita pelos extratores, antes dos toletes serem enviados para a indústria. A máquina corta, limpa e carrega os toletes em transbordo ou no próprio caminhão em pouco tempo.

A cana madura apta a ser processada industrialmente, apresentando potencial químico-tecnológico, deve ser colhida, possibilitando eficiências e rendimentos agroindustriais. Neste sentido são determinados elevados teores de Brix, Pol e Pureza, menores teores de Açúcares Redutores e Fibra % Cana da ordem de 12,5%. A cana sadia, fresca e limpa não contém dextranas, gomas ou polissacarídeos. Por isso, do ponto de vista técnico, não se deve realizar a despalha a fogo dos colmos antes da colheita.

Quando os colmos são submetidos a queima intensa, não planejada e não controlada há efeitos negativos sobre a qualidade da matéria-prima e processo produtivo como resultado das deteriorações tecnológicas e microbiológicas, além de consequências diretas ou indiretas sobre o rendimento industrial e econômico. Fatores climáticos, intensidade da queima, sanidade e maturação da cultura afetam a intensidade destas deteriorações. Os colmos submetidos à queima apresentam maior perda de peso, maiores teores de Açúcares Redutores, maiores valores de Brix dos caldos, (efeito da desidratação), maiores valores Pol dos caldos (destruição de levulose e maior efeito de glicose, ou alterações na leitura do polarímetro por ação de gomas e polissacarídeos), teores elevados de Dextranas e polissacarídeos, menores valores de pureza, confirmando a perda de qualidade.

As alterações são resultado da ação de microrganismos, que penetram nos tecidos de armazenamento dos açúcares, pelas rachaduras e orifícios abertos na casca dos colmos durante a queima, pela destruição das ceras e altas temperaturas a que estes são expostos. As temperaturas são de 200oC até mais de 1000oC na parte superior dos colmos. Quando o fogo cessa, os contaminantes acessam as células de armazenamento dos açúcares, e por processos metabólicos passam a degradar e consumir os açúcares, produzindo metabólitos indesejáveis para os processos industriais.

Dentre os efeitos mais frequentes podem ser destacados a desidratação dos tecidos do colmo, desequilíbrio do sistema enzimático, perda de açúcares, produção de ácidos, gomas, polissacarídeos e outros compostos tóxicos. Há também aumento dos teores de impurezas minerais, pois ocorre a exsudação de caldo através das rachaduras e orifícios e a terra fica mais facilmente aderida à casca, aumentando assim estas impurezas.

Como consequências da queima não planejada verificam-se o ressecamento e “azedamento” dos colmos, dificuldades nas operações industriais como clarificação dos caldos, aumento da viscosidade dos xaropes, massa cozida e melaço, dificuldades na esgotabilidade dos méis e crescimento dos cristais formados, aumento da cor, cristais alongados “tipo agulha”, floculação do fermento, maior produção de ácidos, redução da viabilidade das células de leveduras e dos brotos, redução dos brotamentos, dentre outros. Deve-se destacar ainda o aumento dos custos de produção, pela necessidade de se utilizar insumos para contornar os problemas advindos desta operação indesejada, além da depreciação da qualidade dos produtos finais.

Considerando-se todo conhecimento adquirido pelo homem no mundo contemporâneo, a preservação do planeta é mister para a manutenção da vida sob condições de equilíbrio, sustentabilidade e preservação. A produção da cana-de-açúcar sem o emprego do fogo, incorporando-se os restos culturais no solo, possibilita: fixação de 15 t/ha de CO2 por ano pela fotossíntese, manutenção da umidade do solo; ciclagem de nutrientes; controle de plantas invasoras; controle da erosão com proteção do solo; redução do uso de herbicidas; aumento do teor de matéria orgânica no solo; redução de nematoides; melhor aproveitamento energético da cana, pela cogeração de energia; melhoria da qualidade da matéria-prima entregue para a industrialização, além da redução da poluição atmosférica provocada pela queima.

Por estes motivos, a queima dos canaviais não é uma prática recomendada, sob a ótica da agricultura moderna, que se caracteriza por ser sustentável, atendendo às necessidades das gerações atuais sem comprometer a capacidade das gerações futuras, suas necessidades e aspirações. O setor sucroenergético está construindo esta mentalidade, através de transformações de atitudes e estratégias, para ser economicamente viável, socialmente justa, culturalmente aceita e ecologicamente correta.

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