Revitalização de solos na cultura da cana-de-açúcar: a microbiologia como parceira do produtor

29/12/2017 Geral POR: Revista Canavieiros
Por: Fernando DiniAndreote* e Dorotéia Alves Ferreira*

Apesar de nem sempre reconhecidos, os solos compõem o principal agente do sistema produtivo agrícola, pois é sobre este que as plantas se sustentam, e é dentro deste que ocorre toda a dinâmica da água e nutrientes que serão usados ao longo do desenvolvimento vegetal. Muitos processos físicos e químicos presentes no solo são de nosso conhecimento, no entanto, poucos ainda se conhece e se explora em relação aos organismos presentes nos solos utilizados para a prática agrícola.

Inicialmente, cabe ressaltar que o universo biológico dos solos é amplo, onde ocorrem milhões de organismos e milhares de espécies em cada grama de solo. Estes organismos, em sua grande maioria, são parceiros do produtor, pois auxiliam o desenvolvimento das plantas de diversas maneiras. Existem no solo, por exemplo, organismos capazes de suprir a planta por meio da fixação biológica do nitrogênio ou pela solubilização do fósforo, além de organismos atuantes na proteção de plantas contra pragas e patógenos radiculares. Estas reconhecidas funções, juntamente com outras relacionadas ao funcionamento e estruturação do solo, são altamente dependentes da biodiversidade do solo e da atividade microbiana presente neste ambiente. Ao contemplarmos esta multifuncionalidade microbiana no sistema solo-planta, surge um importante questionamento sobre o efeito das práticas agrícolas e de manejo sobre este componente do sistema solo.


As plantas são altamente conectadas a microbiologia do solo, primeiramente por servirem como fonte de nutrientes (com destaque para o carbono), os quais são liberados para estes microrganismos pela exsudação radicular ou ao longo do processo de decomposição da matéria orgânica. Assim sendo, a biodiversidade de plantas está intimamente correlacionada com a biodiversidade microbiana do solo.

No entanto, como a prática agrícola requer uma homogeneização da ocorrência de plantas nas áreas (tanto espacial como temporal), esta leva a uma redução natural da biodiversidade dos solos. Quando isto ocorre, muitos dos processos que derivam da atividade microbiana perdem eficiência e tornam o sistema de produção mais dependente das atuações do produtor. Por exemplo, se perdemos a atividade de proteção das plantas por organismos antagonistas a patógenos, o produtor precisar proteger mais as plantas por meio do uso de defensivos. Em resumo, a falta de cuidado com a fração viva do solo gera um sistema mais dependente do produtor ano após ano, o que se reflete diretamente no incremento no uso de defensivos e fertilizantes, e consequentemente aumento nos custos de produção.

A próxima questão que surge está relacionada a maneira em que podemos interferir neste processo, ou seja, como preservar a biodiversidade e explorar melhor o potencial presente nos organismos do solo? A resposta para esta pergunta é composta de diversas possibilidades, pois pode-se atuar no manejo biológico dos solos de diversas maneiras. Primeiramente, a atuação mais simples se dá pela diversificação das formas de matéria orgânica que ocorrem no sistema, o que pode ser atingido por meio da ocorrência de um maior número de plantas na área, ou pela utilização de resíduos orgânicos nas áreas (nas formas de fertilizante orgânico ou organomineral). Outra forma de atuação é por meio da inserção de micro-organismos nos solos cultivados, o que pode ser feito de forma acoplada a primeira atuação, uma vez que resíduos orgânicos, principalmente os derivados de animais, são ricos em biodiversidade. Soma-se a estas oportunidades, uma gama de pacotes tecnológicos disponíveis no mercado, que busca dar suporte ao produtor num manejo mais adequado da fração viva dos solos.

Aplicando estes conceitos no sistema de cultivo de cana-de-açúcar diversos pontos apresentam particularidades. A característica predominante de monocultivos com cana-de açúcar é altamente atuante na perda da biodiversidade dos solos cultivados nesta condição. Por ser uma planta semiperene e que não apresenta área de entre linha capaz de permitir a presença de outras espécies vegetais, o sistema cana-de-açúcar é um dos mais limitantes quanto à ocorrência de biodiversidade vegetal. No entanto, o desenvolvimento do setor, com a implementação de novas práticas, traz novas oportunidades para possíveis práticas que possam atuar nesta diversificação de plantas. Um exemplo disto está na prática da meiosi, onde as plantas mães são cultivadas conjuntamente com outras culturas (predominantemente leguminosas), o que torna este sistema apto a receber, mesmo que por um pequeno período, outra espécie vegetal. Percebe-se com esta prática diversos ganhos na cana-de-açúcar que se desenvolve posteriormente, tanto pelo aporte de nitrogênio no sistema, como pela melhor condição biológica que o solo apresenta após o cultivo das demais espécies presentes na meiosi.

Outro ponto importante dentro das particularidades do sistema de cultivo da cana-de-açúcar está no amplo uso de resíduos orgânicos nas áreas cultivadas (palhada, torta de filtro, vinhaça, entre outros). Tradicionalmente, o setor usa os resíduos orgânicos gerados ao longo da produção vegetal e derivados do processo de industrialização da cana-de-açúcar, o que contribui para o aporte de matéria orgânica, que serve como base da atividade microbiana do solo. Aqui cabe uma indicação de aprimoramento do sistema, uma vez que o carbono presente nestes resíduos é derivado da própria cana-de-açúcar. Assim sendo, se este for combinado com carbono derivado de outras fontes, como por exemplo resíduos de origem animal, o ganho com a utilização dos mesmos deve ser ainda maior, servindo como um grande pilar de manejo da vida do solo no sistema de cultivo de cana-de-açúcar. Em conjunto, estas observações mostram a problemática do monocultivos da cana-de-açúcar, mas também evidencia que existem possibilidades para uma melhor exploração da biologia do solo no cultivo desta espécie.

Tanto na cultura da cana-de-açúcar como das demais espécies vegetais, os desafios num melhor uso da microbiologia do solo são grandes. O recente acesso a esta informação por parte dos pesquisadores e produtores tornam as indicações de práticas adequadas ainda iniciais, mas já com grandes potenciais de mudanças nos cenários de produção vegetal. Espera-se desenvolver, de forma conjunta entre academia e setor produtivo, práticas mais específicas para cada cultivo e para cada região, onde a cultura é implantada e cultivada. Certamente, este desenvolvimento levará a uma revitalização dos solos, onde ocorrerá uma ampla exploração deste recurso, e consequentemente um sistema de produção mais equilibrado e funcional, que demandará menos esforços do produtor em suprir as necessidades vegetais.
 
* Fernando DiniAndreote - professor Associado Livre Docente da ESALQ/USP
* Dorotéia Alves Ferreira - pesquisa e Desenvolvimento da Andrios Assessoria e Treinamento em Microbiologia do Solo