Evandro Gussi – Presidente e CEO da UNICA - União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia
Para esta edição, a reportagem da Revista Canavieiros conversou com o presidente e CEO da UNICA - União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia, Evandro Gussi, que é uma figura central na liderança do setor de energia limpa, renovável e natural, e sua visão estratégica tem impacto direto nas discussões sobre o futuro da indústria.
Ao longo desta entrevista, Gussi compartilha importantes informações sobre o papel que a indústria desempenha na oferta de soluções sustentáveis e renováveis. Abordamos temas desde os impactos das mudanças políticas até as oportunidades de crescimento para o setor diante da crescente demanda por fontes de energia mais limpas. Confira!
Revista Canavieiros: Como o setor está respondendo às mudanças nas políticas ambientais e energéticas, tanto no Brasil quanto globalmente, e como isso pode impactar o setor neste ano?
Evandro Gussi: O Brasil tem assumido, cada vez mais, uma posição de protagonista no cenário global, contribuindo para o desenvolvimento de políticas em outros países. Ao lado de Estados Unidos e Índia, o Brasil faz parte dos fundadores da Aliança Global para os Biocombustíveis, lançada em setembro do ano passado e que já conta com 19 países, além de mais de uma dezena de organizações internacionais. A missão da aliança é fomentar o uso de biocombustíveis no mundo, como forma de atender aos compromissos assumidos no Acordo de Paris. A estratégia da aliança é criar um “cinturão de bioenergia” na zona tropical, para disseminar a produção e o consumo dos biocombustíveis, com ênfase para o etanol, biodiesel, biometano e bioquerosene de aviação. Para além de um lugar de referência na nova geopolítica energética global temos a missão de ajudar os países, especialmente os do Sul Global, a trilhar um caminho no sentido de oferecer e garantir o abastecimento de uma energia sustentável. A própria Aliança Global é consequência do reconhecimento que o Brasil tem recebido no tema dos biocombustíveis, especialmente pelo exitoso compartilhamento da nossa experiência feita com a Índia, com efeitos impressionantes por lá. Já os inspiramos a elevar a mistura de etanol na gasolina de 2% para os atuais 10%, e que chegará a 20% em dois anos. Temos a responsabilidade de levar outras nações, especialmente as que ainda não experimentaram os frutos do desenvolvimento, nesse caminho. Temos tudo para oferecer ao Sul Global um modelo de liderança e governança baseada em exemplo e cooperação. A Aliança Global para os Biocombustíveis, pela forma como foi estruturada e pela busca do bem coletivo, é a oportunidade que temos de ocupar o lugar da já tão desgastada luta por hegemonia.
Revista Canavieiros: Considerando a demanda crescente por fontes de energia mais limpas, quais são as oportunidades de crescimento para a indústria de cana-de-açúcar e bioenergia neste ano?
Gussi: As oportunidades são enormes. Existem iniciativas ocorrendo de forma paralela em todo o mundo. Cada vez mais países estão percebendo o potencial que a cultura da cana-de-açúcar pode oferecer, tanto sob o aspecto econômico, social e, obviamente, o ambiental. Índia, Indonésia, países da África e muitos outros que formam o Sul Global têm claro que a bioenergia é o caminho para garantir o cumprimento das metas ambientais relacionadas ao aquecimento global, sem renunciar ao crescimento e desenvolvimento econômico. Uma pesquisa da ESALQ/USP mostra que a instalação de uma usina de etanol provoca um aumento de US$ 1.098 no PIB per capita do município. Nas cidades vizinhas, que acabam sendo influenciadas pela usina, o incremento do PIB per capita é de US$ 475. Esse é um modelo replicável, que cada vez mais países começam a entender, criando um círculo virtuoso enorme.
Revista Canavieiros: O projeto de lei lançado pelo governo federal, chamado Combustível do Futuro, traz uma série de incentivos ao setor do etanol e a bioenergia. Qual é o impacto esperado dessa medida?
Gussi: O projeto endereça temas fundamentais para o futuro da mobilidade e reconhece o papel que os biocombustíveis já desempenharam no país. Ele projeta o Brasil como o primeiro país a considerar o ciclo completo da mobilidade, medindo a emissão não apenas do veículo em si, mas incluindo a energia necessária para fazê-lo funcionar. Imagine um carro elétrico cuja eletricidade vem do carvão mineral. Isso permitirá que todas as rotas tecnológicas – eletrificação e biocombustíveis, por exemplo – sejam medidas com a mesma régua, que é a análise de todo o ciclo de vida do combustível. Outro ponto do programa é o aumento da mistura de etanol na gasolina dos atuais 27% para 30%, uma sábia decisão técnica do governo federal. Com esse aumento, teremos uma gasolina com maior octanagem e menor nível de emissões. Para atendê-la, será um necessário o aumento de 5% na produção nacional de etanol, e a indústria está preparada para essa demanda. Já no tema da aviação, o programa lança a pedra fundamental para o crescimento de SAF, o combustível sustentável de aviação. Importante notar que a indústria aeronáutica já planejou o seu caminho de descarbonização e já deixou claro que mais de 60% da redução das emissões só pode vir pelo caminho da mudança do combustível. De novo, estamos no lugar certo e na hora certa, pois a rota para o desenvolvimento de SAF a partir de etanol é uma das mais promissoras e efetivas.
Revista Canavieiros: Em termos de políticas públicas, quais são as principais necessidades ou oportunidades para o setor de cana-de-açúcar e bioenergia no Brasil?
Gussi: O Ministério de Minas e Energia, sob a liderança do ministro Alexandre Silveira, para quem a transição energética é elemento estratégico da gestão, tem se ancorado no que há de mais avançado em termos de ciência para tratar da transição energética no Brasil. O próprio projeto do Combustível do Futuro tem sido tratado como prioridade na Câmara dos Deputados e no Senado. Temos um ambiente em que toda a sociedade e seus representantes no Executivo e no Legislativo têm claro a importância do tema. O que não podemos perder de vista são iniciativas que tentam distorcer e frear os avanços que a sociedade conquistou nos últimos anos. Para citar dois exemplos, a distorção causada pelo subsídio aos combustíveis fósseis como forma de controle inflacionário, devidamente corrigida no ano passado, é um exemplo de política pública que não pode ser aceita. Além disso, os ataques ao RenovaBio, que de tempos em tempos ocorrem, também enfraquecem uma conquista da sociedade frente aos desafios da agenda climática. Estamos atentos para não permitir que as políticas públicas já estabelecidas sofram ataques daqueles que pensam apenas nos seus interesses.
Revista Canavieiros: A IRENA (Agência Internacional para as Energias Renováveis) prevê que, até 2025, pelo menos 6% da energia consumida globalmente será proveniente de hidrogênio verde (H2V). O Brasil tem potencial para liderar essa mudança na agenda energética?
Gussi: A célula de hidrogênio é uma das rotas tecnológicas para o futuro da mobilidade. Usar o elemento mais abundante do universo como energia é um sonho antigo da humanidade que aos poucos se torna realidade. A água sempre foi a primeira fonte para se extrair o hidrogênio. Porém, o etanol tem se mostrado uma alternativa mais eficiente. Enquanto a molécula de água tem dois átomos de hidrogênio, o etanol tem seis. É possível gerar o hidrogênio a partir de outras fontes, como a eólica, mas a grande dificuldade dessa rota é transportar o hidrogênio depois de produzido. Além de uma grande fonte, o etanol é uma forma prática e já conhecida de transportar o hidrogênio. O etanol pode ser o vetor para a produção de hidrogênio. No ano passado, USP, Shell e Toyota lançaram a primeira estação experimental de abastecimento de hidrogênio renovável a partir de etanol do mundo. Além da aplicação para veículos de passeio, a tecnologia pode ser uma solução de baixo carbono para o transporte pesado, incluindo caminhões e ônibus. Os veículos deixarão de utilizar diesel e os tradicionais motores a combustão interna para começar a usar hidrogênio produzido a partir do etanol e motores equipados com células a combustível.
Revista Canavieiros: Qual é a sua visão sobre o panorama atual dos carros elétricos e como a expansão da infraestrutura de carregamento pode impactar positivamente o desenvolvimento e a adoção dessa tecnologia no Brasil?
Gussi: Em primeiro lugar, precisamos entender a diferença entre tendência e resposta tecnológica. A primeira sempre representa uma demanda concentrada do mercado para a solução de um desafio. Nesse caso, a tendência é a descarbonização. Para responder à tendência, por outro lado, o mercado busca socorro nas soluções tecnológicas. Portanto, estas servem àquelas, não o contrário. Na prática temos é que descarbonizar (tendência), e as rotas tecnológicas (etanol, eletrificação em suas várias facetas etc.) devem ser aplicadas segundo as circunstâncias concretas que a garantam. Carros elétricos em países que geram eletricidade a partir do carvão, por exemplo, podem ser piores do que os movidos à gasolina em termos de emissão. No Brasil, um estudo da EPE (Empresa de Pesquisa Energética) estima que seriam necessários investimentos da ordem trilhões de reais para criar uma estrutura suficiente para atender à demanda caso a frota brasileira fosse elétrica. A pergunta que temos que fazer é: em um país com tantos desafios sociais, o governo deveria investir, subsidiar ou dar incentivos para criar essa infraestrutura? Em regiões como o Brasil e o Sul Global, onde entram Índia, Tailândia, África e onde está uma parcela significativa das pessoas do mundo, acredito que os biocombustíveis, como o etanol, são uma resposta bastante efetiva para a redução de emissões. Devemos ter em nossas mãos todas as rotas possíveis e aplicá-las segundo as condições ambientais, sociais e econômicas.
Revista Canavieiros: Considerando o compromisso dos países da Organização da Aviação Civil Internacional de alcançar emissões líquidas de carbono zero até 2050, como o etanol pode contribuir para a descarbonização desse setor?
Gussi: Na prática, as empresas aéreas de todo o mundo têm menos de três décadas para zerar suas emissões de CO2, que representam 2% de tudo o que é emitido no planeta. Para chegar à meta, estima-se que 65% do corte de emissão virá da substituição do combustível fóssil atualmente utilizado nas aeronaves pelo Combustível Sustentável de Aviação, o SAF. Atualmente, sete rotas de produção de biocombustíveis são certificadas para produzir SAF. A mais promissora delas é a Alcohol-to-jet (ATJ), que usa o etanol como base. Essa rota foi identificada por especialistas como a solução mais viável em curto prazo para cumprir a meta de neutralidade de carbono da aviação internacional até 2050. No Japão, por exemplo, onde estivemos em dezembro promovendo um seminário sobre o tema, tem uma das metas mais ambiciosas para a implementação de SAF como estratégia para a descarbonização do transporte aéreo. Em 2030, voos internacionais em aeroportos japoneses deverão operar com 10% de SAF, resultando em uma demanda estimada de 1,7 bilhão de litros do biocombustível por ano. Já a União Europeia está em vias de aprovar uma mistura de SAF de 5% ao querosene fóssil a partir de 2025, enquanto o Congresso dos Estados Unidos avalia o mesmo percentual para 2026. Se aprovado esse percentual de 5%, a demanda iminente de SAF seria da ordem de 20 bilhões de litros, ante uma oferta de 300 milhões de litros. Com as matérias-primas disponíveis para a produção de etanol e a possibilidade de crescimento sustentável da produtividade, o setor sucroenergético brasileiro tem o potencial para contribuir com a diversificação das fontes de energia no transporte aéreo.
Revista Canavieiros: Com o início deste novo ano, qual mensagem ou visão gostaria de compartilhar com relação ao futuro da indústria de cana-de-açúcar e bioenergia no Brasil e seu papel na economia e na sustentabilidade?
Gussi: A indústria da cana-de-açúcar é a mais antiga das agroindústrias brasileiras e, provavelmente, a que mais se transformou no decorrer dos séculos. Hoje produzimos etanol de cana e de milho de forma altamente mecanizada, digitalizada, com um nível de governança alinhado à ideia de ESG desde muito antes desse conceito surgir e ser difundido no Brasil. Com políticas públicas sólidas, o setor terá segurança jurídica e previsibilidade necessárias para a ampliação dos investimentos, da renda e do emprego no País. O Brasil possui diferentes alternativas para a descarbonização e, certamente, a bioenergia tem potencial para ser uma das mais relevantes nos próximos anos.